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sexta-feira, 2 de abril de 2010

Filosofia do peru

Este texto não é meu. Foi escrito por Tobias Barreto (1839-1889).

"Filosofia do Peru

O leitor não se ria, o negócio é grave. É um pedaço de psicologia humana, estudada na crista do mais estúpido dos vertebrados, como - quero crer que injustamente - costumam qualificar o pobre do peru. Pode ser - e eu não dissimulo - que o título deste artigo seja só talhado para produzir impressão cômica. Mas nem sempre o cômico é antinômico do sério.
Plutarco disse uma vez:
'Não se pode exercer a retórica sem falar, porém exerce-se a filosofia mesmo pelo silêncio, ou pelo gracejo; porquanto, assim como o mais alto grau da injustiça é não ser justo, e todavia parecê-lo, assim também a continuação da ciência consiste em filosofar sem dar indícios de tal, e de semblante alegre fazer o mesmo que fazem os mais sérios'.
A isto acrescenta Emerson:
'A compreensão para o cômico é um laço de simpatia com os outros homens, uma garantia de saúde espiritual e um meio de proteção contra aquelas inclinações perversas e aquele estado de melancolia em que se perdem muitas vezes os mais nobres espíritos. Um tratante que é sensível ao ridículo pode ainda ser convertido. se porém já perdeu esse sentido, não há mais nada a fazer dele'.
Admitindo pois que o leitor, em vez de mover os músculos da sisudez, mova os músculos do riso, nem por isso dou por frustrado o meu trabalho. Há tempos de filosofar pelo silêncio, e outros pelo gracejo - as duas formas de filosofia que me são mais acessíveis; mesmo porque não gosto dos tempos de chorar - tempus flendi, como diz o Eclesiastes - ou de filosofar pelas lágrimas.
Entretanto, é bom que se note: não quero rir-me, nem fazer os outros rirem, à custa do peru. Este animal, tão malsinado de estupidez, que serve de termo de comparação dos espíritos sem talento e dos amantes sem ventura, despertou-me a simpatia, e isto em tão larga escala, que deu-me assunto para um estudo.
Se eu entitulasse o meu artigo 'História natural do peru', ou 'Anatomia do peru', nada por certo haveria de extraordinário; por que razão haverá com o título que lhe dei? Tudo que tem uma fisiologia, uma anatomia, uma história natural, pode ter também uma filosofia.
E não conheço realmente um exemplar do mundo zoológico mais adaptado a servir de base a todo um sistema de considerações filosóficas do que o amável dindon ["peru", em francês]. Prová-lo-emos.
A primeira vez que o peru me fez pensar, foi também a primeira vez que me chamaram a atenção para uma das suas maiores singularidades. Eu já sabia que o animal era dotado de um natural desazo, que se manifesta em mais de um ponto. Mas não sabia que esse desazo chegasse a uma altura capaz de causar meditação.
É a célebre história do risco [na parede]. Todos conhecem-na. Quem já não deu risada diante do espetáculo fornecido pela estolidez da pobre ave? Refiro-me ao fato geralmente observado de levar-se o bico do peru contra uma parede branca, onde se traça um risco preto, que ele toma por um vínculo - e aí se deixa ficar, contrito e humilhado, até segunda ordem!...
Confesso que também cometi o desatino de rir-me. Mas pouco a pouco, e à medida que o fato, pela repetição, foi diminuindo a possibilidade de um engano, e tomando proporções de séria realidade, eu também tornei-me sério. Por detrás daquele quadro simples e chulo, vi levantar-se uma questão sombria. Eu pergunto a mim mesmo: haverá realmente motivo de zombar-se do peru? Temos nós outros, homens que nos orgulhamos da nossa posição hierárquica no desenvolvimento morfológico e fisiológico das espécies, razão bastante para desdenharmos daquele bruto, que supõe-se preso e subjugado pelo traço negro da parede? Quem pode afirmá-lo?...
A minha negativa é categórica. Todos os sistemas de crenças, esperanças e ameaças que formam o fundo das religiões, os terrores do inferno, as perspectivas do céu, em uma palavra, todos os móveis hipersensíveis que circunscrevem os ímpetos do espírito humano, não serão tantos outros riscos [na parede] a que ele se deixa prender como se fossem vínculos de ferro? A humanidade, que há séculos e séculos acredita numas coisas incompreensíveis, e não tenta sequer conceber um meio de romper com essa crença, não fará também, aos olhos de quem lhas infiltrou, de quem ainda hoje lhas mantém - obscuras, misteriosas, indiscutíveis - , um papel de peru, ou antes de perua, para falar com mais congruência gramatical?
O próprio dever, de que tanto se fabula, quando não é construído pelo homem mesmo, que nele adora a obra de suas mãos - todo o conjunto de ideais, de falsos ideais, que condenam o homem à inação, ou à ação motivada somente por princípios estranhos à natureza humana -, será decerto alguma coisa mais do que riscos na parede?
Limito-me a perguntar.
Estas perguntas, porém, encerram problemas, que o demônio da filosofia me convida, se não a resolver, ao menos a estudar. É preciso, perante a opinião pública, reabilitar o peru, que não é tão bobo como se supõe. Ou  o peru é um idealista, ou o homem também é um peru. Todos os sonhos de ventura, tudo que se imagina, que aparece além, como capaz de conter-nos e subjugar-nos, está nas condições da tese fourierista: Il sérait bien beureux que cela fût vrai, mais qui le prouve? Ce qui le prouve, c'est qu'il sérait bien beureux que cela fût. Porém isto não é, não equivale a um risco [na parede]?
Ah! Se o peru pudesse falar!...
[...]
Que é um mártir? O que morre por uma idéia. E que é uma idéia? Uma coisa bela e grandiosa. Vá que seja. Mas há mártires do céu e mártires do inferno; se não aqueles, ao menos estes, que também têm a sua idéia, julgam-se presos pelo traço negro do dever, que lhes foi incutido; o peruísmo é evidente. Mas, se os outros afinal também cedem a uma ilusão, que vêm a ser todos eles?...
[...]
Por exemplo: enquanto os povos acreditavam no direito divino dos reis, que era que importava essa crença?... Mas veio a revolução, e quebrou o laço fantástico.
[...]
Efeitos do progresso, que vai desaperuando os pobres filhos de Adão. Não obstante, ainda existem muitos riscos [na parede], que é preciso apagar. Indicá-los, porém, já é prestar algum serviço.
[...]"

Um comentário:

  1. Sim indicá-los já é um GRANDE serviço, pois a maior parte da minoria que enxerga os riscos na parede desviam o olhar, é mais cômodo fingir que não oS viu... Triste constatação, mas real o suficiente para que não deixemos de indicá-los sempre que os virmos...

    Devaneio de uma realidade mais REAL!!!

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